Haroldo Maranhão

Esta resenha crítica marca a estréia na Revista Colóquio/Letras, publicação da FUNDAÇÃO CALOUSTE-GULBENKIAN, publicada em toda a Europa em Universidades que possuem Centro de Estudos Luso-Hispano-Americanos. E adivinhe de que é o texto?
Da Meg, do Sub Rosa.
Veja o primeiro parágrafo:
Na aurora do pensamento ocidental , o fragmento heraclítico toma o rio como alegoria do devir , do perpétuo movimento constitutivo do Ser. A história desse pensamento é a nossa história e caracteriza-se , no entanto, por uma confiscação: ao rio movente e semovente preferiu-se a margem que indica o fixo, o permanente , o mesmo. O rio e seu turbilhão, aquilo que escapa ao Ser, ilusão, engano, erro, simulacro, enfim o sempre-sendo subordinado ao sempre-igual da margem . Arresta-se o pensamento nômade que brilha em Heraclito e nos aforismos de Pascal e Nietzsche.
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HAROLDO MARANHÃO
RIO DE RAIVAS
Rio, Ed. Francisco Alves , 1987
Maria Elisa Guimarães
Na aurora do pensamento ocidental, o fragmento heraclítico toma o rio como alegoria do devir, do perpétuo movimento constitutivo do Ser. A história desse pensamento é a nossa história e caracteriza-se, no entanto, por uma confiscação: ao rio movente e semovente preferiu-se a margem que indica o fixo, o permanente, o mesmo. O rio e seu turbilhão, aquilo que escapa ao Ser , ilusão, engano, erro, simulacro, enfim o sempre-sendo subordinado ao sempre-igual da margem . Arresta-se o pensamento nômade que brilha em Heraclito e nos aforismos de Pascal e Nietzsche.
Daí advém o activo e tenso fascénio deste livro em que o A. retoma a alegoria do Rio , freqüentemente tornada símbolo é um dentre outros à da Amazônia exótica e exuberante do cartão postal, acrescida de uma adjectivação metonímica. Não apenas um Rio. Mas um rio de Raivas .Como a força da enchente que exige perícia e destreza do piloto que o singra; como a fúria da pororoca ( fenômeno natural típico ) que fustiga e destrói o que encontra em seu curso. Com efeito, o que torna esse Rio devastador é o uso do excessivo. A raiva como hybris, desmedida. ,sobreexcesso, desrazão, é a matéria utilizada pelo narrador para reconstruir o que poderá ter sido o quotidiano de uma determinada faixa da população é a chamada sociedade burguesa é de uma cidade que, por acaso, se chama Santa Maria de Belém , mas que mutatis mutandis poderia ser a Dublin de Joyce, a Viena de Hermann Broch ou a Lisboa de Eça às vésperas da revolução republicana. As mesmas grandezas e pequenezas de situações e personagens universais reconfiguradas ficcionalmente: o acirrado e ambíguo enfrentamento do governador-interventor-ditador com o igualmente poderoso dono do jornal oposicionista. Luta constante de que se alimentam e vivem, ao mesmo tempo em que manipulam, cada um a seu modo, uma sociedade vergonhosamente hipócrita em que do público ao privado estende-se imensa teia de corrupção, progressiva dissolução de valores.
Não se julgue, porém, que o Autor assume papel de juiz ou figuração de Nêmesis. Sem sutilezas psicológicas ou simplismos sociologizantes, recolhe através da memória, num tempo histórico impreciso é cronologia subvertida à designações e factos que a Cidade às portas do século XXI já quase não registra. A própria designação << Santa Maria de Belém >> já não nos pertence mais. A tarefa de narração assume, pois, a mesma forma de matéria recolhida, recontada: o excessivo. Excessivo da linguagem que transgride todos os códigos, do literal ao <>, e esgarça até o limite possibilidades semânticas. Excessivo da onomástica: bizarra ( Edileuza Mangueira Caridade ); grotesca ( Cagarraios Palácio ) e impiedosa ( Palma Cavalão é aqui o conteúdo alegórico de apelação da personagem parece resultar de um fantástico ajuste entre Haroldo Maranhão e Eça de Queirós. Ah! as manigâncias desses escritores). Excessivo também na tournure frasal, em que frases curtas avultam imensas tal o excesso de que são povoadas; quase sempre o obsceno ocupando a cena.
Alegóricas são também as personagens, resultantes de desconstruções e transformações, o que as subtrai da << regionalização>> e lhes confere uma universalidade. O exemplo da personagem do magistral romance Os Maias acima referido parece advogar a favor desta afirmação. Embora tentador, descabido é procurar a identidade real de cada uma. Isto implicaria uma redução da força própria do ficcional ao domínio do factual. Alegórica, a personagem é um e outro, este e aquele, quase este e muito aquele. Singular, nunca idêntico. Importa é o facto de serem , segundo a óptica do narrador , agentes , espectadores e , sobretudo, testemunhas de um momento histórico, aquele que flagra a chegada tacteante da modernização à Cidade. Não é toa o livro se inicia com uma evocação do passado dentro do passado: << À Santa Maria de Belém chegava-se pelo rio>>, isto é, entra-se na << era dos bacuraus>> ( pássaro nocturno , aqui metáfora do avião ) e hoje , certamente, as << Edileuza Mangueira Caridade>> já não embarcam mais em paquetes para <> no Rio de Janeiro. É por este viés que o olhar do narrador, ao recolher o excessivo, torna-se um olhar desconfiado, oblíquo, quase céptico em relação à euforia do progresso. Modernização e decadência moral caminhando juntas. Não que ele fale em nome de uma moral mais elevada e melhor . O que ele registra com a força demoníaca do excessivo é o quanto a moral é profundamente <>, o quanto ela encontra sua fonte naquilo que ela mesma delimita como desvio e não na placidez confortadora da norma. E lembra ainda que a indiferença política caminha a passo com a indiferença ética.
Mas, no estranho e belo capítulo final, o narrador se despede travestido “se calhar” de << Dona Ebréia>>, e o excessivo dá lugar ao melancólico. Olfacto e olhar é numa poética desses sentidos e tentam verrumar o coração das coisas, tentam recolher, aprisionar , subtrair do continuum do tempo os objectos , os seres, a paisagem que ficam para três. << Miriti ? insistia , forçava a memória, miriti ? como se fosse muito importante lembrar-se>> ( p. 278 ). Tentar salvá-los do esquecimento. Por isso, seu último olhar é para o rio. Impossível voltar atrás, impossível retornar. Perdido para sempre, o passado é como o rio que, opostamente, segue seu curso — é apenas esse amontoado de fragmentos, cacos, ruínas , que a memória deve esforçar-se por recolher, tornando possível a sua transmissão. Melancólica, a escrita do excesso torna-se lírica, amorosa. O Narrador não confina o passado numa íntima e definitiva interpretação; ao contrário, reafirma a abertura de seu sentido , seu carácter inacabado. Com Rio de Raivas, Haroldo Maranhão devolve-nos uma imagem possível, fragmentária , desta Beém do Pará que um dia ( quando ? ) se chamou << Santa Maria de Belém >> e que, por acaso, até poderia ter-se chamado Dublin de Joyce, a Viena de Hermann Broch , a Lisboa de Eça , etc… etc…
– Maria Elisa Guimaraes é professora de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Colabora esparsamente para jornais e revistas de cunho acadêmico ou não, com artigos sobre Filosofia da Ciência e Literatura. Onde intenta uma reflexão sobre a convergência ética, entre esses três domínios: Ciência, Literatura e Estética
– Esta resenha crítica marca sua estréia na Revista Colóquio/Letras, publicação da FUNDAÇÃO CALOUSTE-GULBENKIAN, publicada em toda a Europa em Universidades que possuem Centro de Estudos Luso-Hispano-Americanos.
FONTE
IN: REVISTA COLÓQUIO / LETRAS / NO. 106.
LISBOA , FUNDAÇÃO CALOUSTE-GULBENKIAN
NOV-DEZ 1988 – PP. 115-6
GRFS

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3 Responses to Haroldo Maranhão

  1. Giuzinha says:

    Oiie!
    Adorei seu site!!
    Vc coloca uns textos mto legais!
    Parabens!
    Beijos
    Gi =)

  2. Vannessa says:

    Apesar de nem sempre comentar, volta e meia sobrevôo por aqui…Adoro as suas pensagens…

  3. Leila Eme says:

    Adorei, o texto vale ouro mesmo. Tb costumo ir no Sub-Rosa. Obrigada por sua visita, Fábio, e pelo carinho. Um abraçuu

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