Musa ocupada

Sou uma besta. Quando sento para escrever, não importa o texto, a circunstância ou a necessidade, é sempre na última hora possível, no último minuto possível.
E o que acontece? O texto sai. E o que acontece quando não estou inspirado? O texto sai. E quando estou cansado, com dor de cabeça, com fome, sono, preocupado? Isto mesmo, o texto sai.
Será que a minha Musa tem uma conexão à cabo (fio de prata, hehehe) ou ADSL de alta velocidade, um ICQ cármico e um pager akhasico e, mesmo em cima da hora, arranja uma forma de entrar em contato? Claro que não.
Basta sentar na frente do computador, ligar o Palm ou pegar a caneta, e o texto flui. Conclusão: não adianta só ficar esperando um momento místico de elevação quando ocorreria aquele insight único sobre a alma humana. Não espero mais pela visita da Musa Inspiradora que vai me ajudar a produzir o perfeito e completo conceito sobre o amor, o sentido da vida ou o propósito da morte em um parágrafo maravilhoso.
Se a Zefa, como chamo minha Musa (o nome verdadeiro dela é Yorka Horgílica Noviranda – prima distante das parcas), resolver aparecer, ótimo, melhor para mim. Ela será bem-vinda. Café passado na hora, vela branca acesa, incenso, música do Bill Evans e/ou John Hiatt e tudo o mais que ela tiver direito.
Caso contrário, mãos ao teclado. Escritor não é quem publica, é quem escreve.
Claro que tudo isto não é culpa dela. É minha. A vida da Zefa é um misto de devaneio e sonho em que ela delira e enlouquece um pouco com cada um de seus “inspirados” para que sejam um pouco mais criativos. E, óbvio, não estou na sua lista de prioridades absolutas.
Andei dando uma olhada na relação, uma vez em que ela estava por aqui e foi fazer xixi. No topo da página já meio amarelada estavam (só) dois políticos que estavam sendo preparados (pois ainda não haviam nascido), vários autores, filósofos, alguns músicos, nenhum apresentador de programa de auditório, muitas mães e pais, alguns professores e cinco pesquisadores da cura de doenças complicadas (alzheimer, câncer, esclerose múltipla, aids e chulé). No final da lista, comigo, aspirantes a escritor.
Naquela noite, Zefa, sábia como o tempo, quando voltou do banheiro retocando a maquiagem (sempre muito pesada, já disse para ela) perguntou:
-Gostou da sua posição na lista?
Constrangido, abaixei os olhos e fiquei tentando desvendar os mistérios dos cadarços dos meus tênis, que nunca ficam atados.
Enquanto acendia um Marlboro, antes de sair, Zefa deixou escapar:
– Quanto mais você trabalhar, mais sobe na lista. Não me espere. Sou eu que espero.
E foi embora.

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7 Responses to Musa ocupada

  1. Camafunga says:

    Prometi te apresentar minha musa, outra hora com certeza, mas assumo,um pouco invejoso, acho tua deusa poderosa.
    Abraço

  2. Fábio, sempre tenho dificuldades em avaliar trxtos, pois seja o que for que ache, o interessado, no caso , o Autor, não concorda:-)
    Se paonto uma pequena (ou grande) imperfeição, corro o risco de ganhar desafetos, se digo que é bom (sempre mostrando o porquê, também não aceitam, dizem que é bondade, que são meus olhos etc…
    Mas, mesmo assim vou dizer: esse texto aparentemente leve e witty, é bastante forte e tem dois momentos *altos*: “Escritor é aquele que escreve”
    Não espere pela Musa, ela é que espera por vc”
    Estas são verdadeiras touchstones.
    Seria coincidencia demais dizer que foi um presente por ontem ter sido o Dia do Escritor?
    Parabéns,
    Um abraço forte
    Meg

  3. Fabio Marchioro says:

    Camafunga, vamos apresentar a Zefa para a sua Musa? Quem sabe elas não juntam forças? Já imaginou? Ganhamos todos os prêmios literários… de concurso de paróquia ao Nobel… HAHAHA

  4. Fabio Marchioro says:

    Meg, não sabia que ontem era o “Dia do Escritor”. Isto a Zefa não contou, mas pelo menos ela deixou eu usar o nome dela no texto. 8-))
    Obrigado pelos seus comentários. Valorizo muito sua opinião.

  5. sara fazib says:

    Fabio
    O texto é show. Andei sumida e senti saudade de você, do seu papo e dos seus textos. Passei no blog da Nancy. O mesmo bom gosto extremo.
    beijo e querer bem
    sara

  6. Lilas Ly says:

    Tenho lido seus textos, gostei de quase todos. Voce tá me dando motivacoes para comecar o meu. Cara como voce escrever bem! Estou com inveja, acho que é da boa. Parabéns! Sua admiradora chineizinha. Lilas Ly

  7. Sérgio says:

    Bem-humorado e fluente. Só não pude evitar a associação com a Sharon Stone de ar blasé como a musa de Albert Brooks, um roteiristaque não consegue emplacar mais um sucesso, num destes filmes HBO que eu insisto em assistir aos pedaços, entre o final do futebol e a hora de buscar as filhas em festinhas. Vou virar assíduo do site. Abs. Sérgio

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