30, 25, 3

30, 25, 3

Foi a seqüência de números que coloquei no cadeado: 30, uma volta completa para a esquerda continuando até o 25 e avançando devagarzinho que o 3 tá perto.

Clanc. Não abriu.

Repeti: 30, volta completa, pára no 25 e desta vez volta para o 3. Clanc.

Merda.

Tomei um gole de água. Fingi que não era comigo. Os caras no vestiário da academia fazendo de conta que não sacaram que o besta aqui esqueceu o segredo do cadeado. Mais um gole.

Primeira vez que, com água, engoli em seco.

30, 25, 3. Não.

Será que era 25, volta completa, para no 30 e vai para o 3? Tentei.

Clanc.

Tenho certeza que o último é o 3. Acho… não! Tenho certeza. E que começa com um dos dois outros.

30, 25, 3. Clanc.

25, 30, 3. Clanc.

Estou tão cansado que embaralhei os números? Tá certo que dei uma forçada no exercício e fiquei meio tonto. Mas passou. Faz tempo.

Será que peguei o cadeado da Mulher? Foi isto. Claro. Não sei o segredo dela… quer dizer, o segredo do cadeado dela… ah, você entendeu.

Mas… peraí: usei a combinação certa quando abri o cadeado para trancar a porra do armário. Vai ver tive um treco quando fiquei tonto. Isquemia.

Esqueci meus números. Já pensou? Número do prédio, do andar, do apartamento, telefone, celular, CPF, RG. Quanto calço, minha idade, aniversário da Mulher, conta e senha do banco, quantas calorias tem um pote de sorvete de doce de leite, as medidas daquela instrutora de spinning…

Mas não. Tá tudo lá. Lembro de tudo. Inclusive das medidas. Estas eu bem que poderia ter esquecido.

O pessoal no vestiário está estranhando. Fui até onde ficam as pias, lavei o rosto e sequei a cabeça, que não dá para sair na rua com o cabelo molhado quando a temperatura está 2ºC.

Tentei tomar água. Garrafa vazia. Vou tentar o segredo de novo. Mas o cara que estava me olhado estranho ainda está lá. Pior: pelado. Vou encher a garrafa lá fora perto do Bench Press, ou o que chamo de “Câmara de Tortura 4”.

Água. Tava fresca. Ok. Estou melhor. Agora. A primeira combinação que vier na cabeça vai ser a certa e o segredo é…

30. 25. 3. Com uma voltinha completa antes do 25.

Ok. Cool. É isto aí. Vamolá. Chegou a hora. Vestiário vazio. Ninguém me olhando. O Cara Pelado está cantarolando qualquer coisa no chuveiro. Estou calmo. Chego no armário. Vamolá. É isto aí. Calmo. Relaxado. E…

30, volta, 25, 3.

Clanc.

30 volta 25 3.

Clanc.

Putz!

30volta253Clanc30volta253Clanc30volta253Clanc30volta253Clanc.

30.

Volta completa.

Para no 25.

Volta para o 3.

Clanc.

Mifudi.

Ok. Plano B.

Tá frio e ventando forte. Não posso ir embora sem as roupas que estão no armário. Não adianta ir embora porque a chave de casa está no bolso esquerdo do casaco, dentro do armário. Não tenho dinheiro para pegar o metrô e ir buscar a chave de casa no trabalho da Mulher pois minha carteira está… sim, dentro do armário. Para ligar para a Mulher trazer a chave de casa para eu ir até lá checar o segredo do cadeado para voltar para a academia e pegar minhas coisas preciso do celular. Que está no bolso direito do casaco.

Água.

Vem aquela sensação de desamparo. Sou um incompetente. Um bosta. Não tem para quem pedir ajuda. Não tem nenhum conhecido na academia. Nem para tirar sarro de mim.

Já sei. Plano C. Ligar para a Mulher lá do telefone da recepção.

Gênio. Não sou um bosta.

O número é…

… é…

Caceta. Não memorizei ainda.

Não sou um bosta?

Coloco a mão na porta do armário. E celular está ali, do outro lado daquela fina folha de metal pintada de amarelo. Menos de 10 centímetros. Speed dialing número 2.

Plano D.

Vou até a recepção, explico que talvez tenha pegado o cadeado da Mulher (não tenho mais certeza de nada) e peço para verificarem no computador o número do celular dela.

Gênio.

Andando rápido, decidido, desbostificado, passo pelas salas, subo a escada que parece mais longa do que nunca, e chego lá. Não conheço esta moça. Acho estranho colocarem uma pessoa (bem) obesa na recepção de uma academia. Não entendo a lógica. Mas, com todo o respeito, foda-se a Gorda.

– Oi, tudo bem? Pois é…

Expliquei.

Ela:

– Seu sobrenome.

Soletrei.

– “Mulher” é o nome dela?

– Sim.

– Tem este número aqui ó. Serve?

Não servia. Era o número de casa.

Mais um gole de água enquanto me rebostificava.

Plano E.

Tentando manter um fiapo de dignidade:

– Você tem aí um pé-de-cabra? (Uma Gorda com só um pé-de-cabra… hoje acho isto engraçado).

– Não. Mas tem o “COISÃO”.

Tava fazendo fila atrás de mim.

– Ok. Dá o coisão.

COISÃO mesmo, com maiúsculas. Um alicate gigante , daqueles que a gente vê em filme quando bombeiros resgatam a mocinha do carro acidentado. Vermelho. Mais longo que o meu braço.

Mico de proporções bíblicas. Tive que passar por toda a área de esteiras e pelas salas dos marombeiros até chegar ao vestiário.

E o Cara Pelado tava lá de novo, secando as jóias da coroa.

Cheguei perto do armário com o monstro vermelho e apontei para o cadeado. Linguagem universal do idiota que esqueceu o segredo do cadeado.

O Cara deve ter achado que eu ia usar o COISÃO nele. Espasmodicamente virou de costas. Ele tinha bunda murcha. Única justiça poética nesta novela ridícula.

Levantei o COISÃO, que naquele momento eu já havia apelidado de “Fudêncio” e, com uma mordida, cortei a alça do cadeado.

Esqueci do mico. Respirei aliviado. Mais um gole de água.

Veio uma urgência de ir embora. Para casa. Peguei meus bagulhos, a ferramenta e voltei para a recepção. Só tinha a Gorda. Coloquei o Fudêncio em cima do balcão e, sorrindo amarelo, semi-desbostificado, disse.

– Assim não tem segredo que resista.

A Gorda não entendeu a piada.

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5 Responses to 30, 25, 3

  1. Denise says:

    A situação é triste, mas o texto muito bom. Estranho a aprendiz falar do mestre, mas a gente pode elogiar, né? Não foi à toa que escolhi você pra meu orientador! Saudades, beijo!

  2. Paola says:

    É meu caro amigo, aqui o coisão funciona também, ahahaha. As mulheres inclusive pediram para que colocássemos interfone no vestiário, pois o que acontece normalmente é de elas estarem peladas quando não lembram onde colocaram a chave ou qual é o segredo, hihihih. Fudêncio é O cara!!! Abraços!!!!

  3. Bruna Rasmussen says:

    esses cadeados de voltinha são o fim. já passei por isso, acredite haha. belo relato, btw. abs

  4. Nivea says:

    Desculpe, amigolho, sei que é tarde, mas hoje me dei ao desfrute de ler alguns dos seus textos. E tive um acesso de riso com as rebosteações do texto. Boa. Fazia tempo que não ria assim, a ponto de chorar.

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