Esta matéria de autoria de

Esta matéria de autoria de Luciano Trigo, publicada no jornal O GLOBO de 06/03/2001, para mim, é como um grito de gol, em final de copa do mundo, aos 44:50. Interessante notar que hoje é o Dia Internacional da Mulher.
“Um tapinha não dói…”
Cheguei a uma conclusão neste carnaval: sou mesmo um homem do século passado. Depois de ouvir pela milésima vez refrões como “Um tapinha não dói”, “Vou te jogar na cama e te dar muita pressão” e “Entra e sai, na porta da frente e na porta de trás”, acompanhados de coreografias pra lá de sugestivas, a sensação que tenho é de que chegamos ao limite da baixaria. Simplesmente, não temos mais pra onde ir.
Sei que o fenômeno do funk é interessante do ponto de vista antropológico, que ele reflete um entrelaçamento positivo entre o morro e o asfalto, uma diluição promissora das fronteiras entre as classes sociais, etc. Mas gostaria que alguém intelectualmente “preparado” me dissesse o que passa pela cabeça de uma adolescente de família, que rebola e responde “Au, au!” quando ouve o refrão “Cachorra!”. A virada do milênio jogou muita coisa na lata de lixo da Historia, e acho que neste processo foi junto a nossa capacidade de indignação. Tiveram o mesmo destino, para o bem ou para o mal, diversas conquistas das feministas, que depois de lutarem durante décadas contra a opressão do macho, devem estar vendo, consternadas, suas filhas embarcarem no “bonde do Tigrão”. É intrigante, aliás, a inexistência absoluta de reação, por parte das mulheres pensantes do país, ao processo em curso de vulgarização radical da imagem feminina, que já ultrapassou todos os limites da imaginação.
Mas o mais intrigante mesmo é a questão moral, ou melhor, a ausência da moral como questão. Não se trata mais de uma inversão de valores, mas da eliminação total de qualquer valor relacionado à conduta sexual: todo comportamento é legitimado, e o que no passado era motivo de escândalo hoje pode ser assimilado, maquiado e atáe incentivado pela mídia, em horário nobre. Um exemplo desse fenômeno é o novo “status” de uma variação da profissão mais antiga do mundo: a garota de programa. Hoje, a julgar pela mídia, esta é uma atividade natural que não contraria as normas da vida em sociedade nem estigmatiza quem a pratica. Sem alicerces morais, sem noção de certo e errado e com exemplos como este, o que impedirá uma menina bonita de usar seu corpo para ascender socialmente, num mundo que a estimula permanentemente a se transformar num bem de consumo para que ela própria possa consumir outros bens? Ou, para não irmos tão longe, o que a convenceráa de que o sexo deve ser vinculado ao amor, e não transformado num instrumento de exploração mútua, num mundo regido pelas aparências e pelo dinheiro, onde um carro importado vale mais que a honestidade e o caráter?
Não se trata de defender uma sociedade repressiva, mas o fato é que essa total ausência de freios explica a proliferação de orgulhosas “cachorras” e “preparadas” em todas as frestas do tecido social. É claro que elas sempre existiram, mas antes pelo menos havia um pudor em relação às aparências que as confinava simbolicamente a uma margem, a uma periferia simbólica da vida cotidiana. Numa palavra: havia vergonha. Este pudor e esta vergonha desaparecem, e hoje a cidade mais parece um faroeste, e sua vida noturna o cenário de uma caça desesperada ao prazer e a grana. E isto durante o ano inteiro: o Carnaval só torna mais evidente essa dinâmica. Um tapinha pode não doer, mas o que ele representa é doloroso, pelo menos para alguém do século passado.

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1 Response to Esta matéria de autoria de

  1. Fernanda says:

    Olá..moro em Curitiba e gostaria de informações sobre grupos feministas em atividade na cidade.Calendario de encontros no capital e tbm de material de sua autoria.Obrigada

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